Hoje, vive em Donetsk. Foi uma das sobreviventes do massacre na Casa dos Sindicatos, a gota de água que lhe fez pensar que o tempo dos comícios pacíficos tinha acabado. Juntou-se, então, à resistência na cidade com atentados contra as estruturas de apoio aos grupos paramilitares neonazis. Esteve presa durante quase cinco anos.
Por Bruno Amaral de Carvalho / Nós Diario
Gosta de telenovelas brasileiras e tem muita curiosidade com a língua portuguesa. Ekaterina é de Odessa e aceita conversar comigo junto ao monumento aos libertadores do Donbass, uma estátua enorme com um soldado do Exército Vermelho e um mineiro, o local onde todos os anos milhares de pessoas celebram o Dia da Vitória com as fotografias de familiares caídos na luta contra a Alemanha nazi. Esta tradutora de espanhol, inglês e holandês nasceu ainda na União Soviética e viveu muitas dificuldades na década de 90.
Diz que não é possível explicar o que acontece hoje sem se falar do fim da URSS: “Tudo começou em 1991, quando a maioria votou a favor da manutenção, mas o que aconteceu foi o contrário”. De facto, havia críticas ao comunismo, explica, mas o capitalismo destruiu a realidade política e económica do país. “Éramos três irmãos e os nossos pais tinham muitos problemas para nos alimentarem. Foi muito duro”, conta.
Estava em Odessa quando, em 2013, começaram os protestos contra o presidente Viktor Yanukovich na capital ucraniana. Ao princípio eram pacíficos e o objectivo era contestar a decisão do líder do país de recusar assinar o acordo com a União Europeia. Segundo Ekaterina, houve agressões contra os manifestantes que teriam o propósito de incendiar os ânimos da população. “Começaram a aparecer batalhões nacionalistas, grupos paramilitares, que usavam símbolos neonazis. Exigiam enforcar os russos, proibir a língua russa e demolir os nossos monumentos históricos”, recorda.
O dia seguinte à queda de Yanukovich foi o ponto de partida para a resistência anti-Maidan. Em vários pontos do país, comícios com milhares de pessoas condenaram aquilo a que chamaram golpe de Estado. “Eu era simplesmente uma cidadã da minha cidade e com outros activistas distribuia panfletos sobre a situação na Ucrânia, que estava agora debaixo do controlo dos Estados Unidos, que queriam provocar uma guerra e destruir o nosso país”. O lugar onde se concentrava o movimento anti-Maidan era na maior das praças de Odessa, junto à Casa dos Sindicatos.
Massacre
No dia a seguir ao 1º de Maio, milhares de hooligans neonazis com ligações a forças políticas de extrema-direita e grupos paramilitares chegaram à cidade para assistir ao jogo entre o FC Chornomorets e o FC Metalist. Segundo Ekaterina, havia um acordo secreto entre as autoridades locais e estes grupos para desmantelarem o acampamento anti-Maidan. Era precisamente onde estava esta tradutora no dia 2 de Maio, a aprender com outras mulheres a fazer manobras de primeiros socorros na praça ao lado da Casa dos Sindicatos com uma enfermeira.
Não esquece esse dia. Havia muitos idosos e muitas mulheres no lugar. Foi noutro ponto da cidade, na Praça Grega, que começaram os confrontos. “Aí, entraram em confronto esses hooligans, cerca de 3 mil, com os nossos rapazes. Não sei quem é que se lembrou da ideia de enfrentar 3 mil pessoas porque os nossos eram uns 300, eram poucos”, descreve. Foi onde houve os primeiros mortos. Ekaterina e os que a acompanhavam sabiam já do que estava a acontecer mas decidiram ficar e esconder-se na Casa dos Sindicatos. “Com a ajuda de um machado, abrimos a porta e entrámos. Pensámos que escondidos nos daria tempo para esperar pela polícia para nos ajudar. Mas a polícia não chegou. O chefe da polícia recebeu a ordem de não enviar ninguém”.
Passado meia hora, a turba chegou à Casa dos Sindicatos e começou a incendiar as tendas, a bater em todos os que viam e a lançar cocktails molotov contra o edifício. Muitos morreram queimados, outros tentaram saltar da janela e foram mortos a tiro. Quem sobrevivia era espancado com barras de ferro, muitos até à morte. Ekaterina foi retirada já pelos bombeiros com outras mulheres. “Quando saí à rua, vi cinco ou seis pessoas mortas. Enquanto tentava apagar o fogo dentro do edifício, fui das últimas pessoas a ver Vyacheslav Markin [deputado do Conselho Regional de Odessa], que foi espancado e acabou por morrer a caminho do hospital”, lembra. Muitos dos sobreviventes foram levados pela polícia como criminosos.
Para Ekaterina, o objectivo deste massacre era intimidar os pró-russos de Odessa. “Ouvi muita gente dizer que o que aconteceu foi o que os levou a ir para o Donbass lutar contra estes fascistas. Foi a última gota de água para todos nós. Aí entendi que o tempo dos comícios pacíficos tinha acabado”.
Ekaterina juntou-se, então, a um grupo de pessoas e começaram a fazer actividades subversivas num contexto cada vez mais perigoso. Distribuiam o jornal pró-russo Novorrossia, de Donetsk, nas caixas de correio e faziam pintadas nas paredes contra o fascismo. “Os neonazis riam-se das vítimas da tragédia. Havia um bar em Odessa que tinha refeições com nomes que ofendiam a memória dos nossos mortos. Também havia centros voluntários que apoiavam estes grupos paramilitares neonazis e decidimos que todos esses centros iam fechar”, descreve.
«Os serviços de segurança da Ucrânia, o procurador, todos os órgãos, em vez de se oporem ao golpe de Estado», di Ekaterina
Esta mulher de Odessa associava as acções que faziam àquilo que fizeram os guerrilheiros na grande guerra patriótica, durante a Segunda Guerra Mundial, quando os seus avós lutaram contra os alemães que invadiram Odessa em 1941. “Os serviços de segurança da Ucrânia, o procurador, todos os órgãos, em vez de se oporem ao golpe de Estado, apoiaram-no. Eram cúmplices e decidimos actuar”.
Começaram então a fazer atentados contra vários objectivos. “Destruíamos estes centros mas nunca matámos nem ferimos ninguém”, assegura. Isto foi possível durante cerca de dez meses até serem capturados pelas forças ucranianas em 2015. Por ser mulher, diz que não foi torturada mas não a deixaram dormir, comer ou beber durante praticamente três dias. Ameaçaram que a iam matar e que ninguém lhe ia encontrar o corpo, e também que iam prender os seus pais. “Queriam que comprovasse que era uma agente russa mas nós actuavamos por nossa conta. Queriam ainda que denunciasse outras pessoas que eles queriam prender mas não lhes disse nada”.
O homem com quem acabaria por se casar, também preso, foi torturado e teve de ser operado este ano em Donetsk para recuperar das consequências das agressões nos órgãos internos. Depois de quatro anos e oito meses, a Ucrânia e as autoridades pró-russas do Donbass trocaram prisioneiros e Ekaterina passou a viver com o seu marido em Donetsk. No dia 25 de Fevereiro, depois de retirar os pontos da operação cirúrgica, o companheiro desta mulher de Odessa partiu para a linha da frente e combate neste momento junto às forças pró-russas. “Estou orgulhosa mas não esperava outra coisa dele. Consideramos que é importante defender a nossa pátria”.
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