Duran Clemente tornou-se numa figura pública no 25 de novembro de 1975 mas, embora menos conhecido, o seu papel na Revolução dos Cravos não foi despiciendo. Durante a sua comissão na Guiné, ainda em 73, o hoje coronel na reforma esteve na génese do Movimento dos Capitães, a força motriz que haveria de alimentar o dia em que Portugal afastou o Estado Novo.
Por Angelo Nero | 25/04/2025
O Movimento das Forças Armadas nasceu da convicção de uma parte do exército português em acabar com a guerra colonial, mas será que houve uma certa contaminação entre as lutas de libertação dos povos da África e a luta contra o próprio fascismo português?
Contaminação dos tempos. Sim.
Em Portugal, a cegueira do “Império” (perdido e imaginado) levou Salazar a não negociar uma solução política condigna para a independência das colónias, no contexto do pós II Guerra Mundial. E o ditador conseguiu sobreviver à derrota do nazi-fascismo, ancorado num discurso anticomunista que se tornou hegemónico e ocidental.
Na década de 1960, grandes acontecimentos internacionais anunciavam rupturas e reclamavam a urgência da mudança, com movimentos sociais contra o racismo e a guerra do Vietnam, pela liberdade, igualdade e direitos humanos. Anos prósperos em ideias e ricos em sonhos, de lutas políticas e culturais travadas na Europa e no resto do mundo: Luther King (“I have a dream”, 1963); Black Power (o orgulho contra a opressão racial, 1966); Maio de 68 “Seja realista, exija o impossível” (a insurreição que superou barreiras étnicas, culturais e de classe); o movimento Hippie (“peace and love” e “ban the bomb”); os Beatles (“All You Need Is Love”, 1967); o Woodstock (na esteira da contracultura, 1969); etc, etc.
Foram os gritos da revolta que inspiraram a minha geração, ampliados nas canções de Bob Marley, Angela Davis, Bob Dylan, Janis Joplin e tantos outros, ou na voz da guitarra de Jimi Hendrix. Neste contexto, os militares do quadro permanente, forjados nessa nova cultura militar (e na contracultura civil), não poderiam ficar indiferentes aos ventos da mudança e, uma minoria esclarecida, conseguiu consciencializar os mais distraídos e cativá-los para a Revolta.
As lutas internas de antifascistas e anticolonialistas, a repressão, prisão e censura de patriotas e uma guerra colonial (a luta dos guerrilheiros africanos) sem fim político à vista fortaleceram a nossa consciência para a mudança.
Os capitães que fizeram o 25 de Abril tiveram de se organizar. A capacidade organizativa resultou da estreita unidade conseguida em torno de um objectivo comum, assente em duas razões primordiais: 1. acabar com a Guerra Colonial; 2. libertar o país da Ditadura. Uns foram mais incitados pela primeira das razões, e outros pela segunda, que era fundamental à concretização da primeira.
A tarefa, de agregação de esforços e vontades entre os militares, começou a tomar consistência em meados de 1973, após o III Congresso da Oposição e Democrática de Aveiro, que teve como objetivo central preparar um programa comum e listas unitárias para defrontar a Ação Nacional Popular nas eleições, bem como a contestação “dos futuros capitães do MFA” ao Congresso dos Combatentes de Junho (Porto) e à publicação do célebre Decreto-Lei n.º 353/73.
Numa ditadura tão longa como a de Salazar e do seu sucessor Marcelo Caetano, em que parecia não haver no povo português uma verdadeira resistência política ao regime, como foi possível organizar uma revolução, liderada pelos militares, e também, com forte inclinação para a esquerda?
Alguns militares tinham adquirido alguma cultura resultante da frequência do ensino secundário e superior. Mas, a partir da década de 1960, assistimos a um processo “de democratização” que alargou o acesso ao ensino dos cadetes dos três ramos das Forças Armadas. Para isso contribuiu a Reforma do Ministro do Exército, Almeida Fernandes, e do Secretário de Estado, Costa Gomes, na Escola Militar e na Escola Naval, que passaram a academias de ensino universitário, proporcionando aos seus alunos licenciaturas em ciências militares e outras áreas técnicas especificas. Neste contexto, os filhos da classe média alta e de oficiais generais deixaram de ser os eleitos das Academias Militares e rasgou-se uma janela de oportunidades para os filhos do Povo. Verificando-se, no ramo do Exército e da Força Aérea, em que o número médio de alunos era de 80 cadetes filhos da burguesia, um aumento significativo para cerca de 400 filhos de classes sociais menos abastadas.
A socióloga Maria Carrilho (em Sociologia na Academia Militar: de uma história improvável aos desafios atuais, 2021), diz-nos que no âmbito da reorganização da Escola do Exército, em 1959, que passou a designar-se por Academia Militar, houve a ambição de formar oficiais para os quadros permanentes do Exército e da Força Aérea. Por meio da criação de novos cursos e da alteração dos planos curriculares, requisitos fundamentais a uma educação intelectual necessária à “complexidade e ecletismo” das funções inerentes. Atribuindo-se especial relevo às capacidades técnico-científicas aplicadas à guerra e ao desenvolvimento de “uma bem cuidada cultura geral e humanística” de que um oficial de carreira necessitava para “enfrentar, como instrutor, como educador e como chefe, melindrosos problemas humanos”.
A sociologia surgiu entre as novas matérias a ensinar na renovada escola de oficiais, sendo a Sociologia Geral a vigésima de cinquenta e quatro cadeiras oferecidas com diferentes combinações nos dez cursos existentes: Infantaria; Artilharia; Cavalaria; Transmissões; Engenharia Militar (e também nas especialidades de Eletrotécnica e Mecânica), Administração Militar e Engenharia Aeronáutica Militar (Decreto-Lei n.º 42151, de 12 de fevereiro de 1959).
Até então, a disciplina de Sociologia Geral não fazia parte do tronco comum de formação, estava reservada aos cursos de Engenharia, cujo plano de estudos, no que respeita à componente académica, passou a ser semelhante à que vigorava no Instituto Superior Técnico (IST), onde os estudantes da Academia Militar concluíam os últimos anos de formação (já como oficiais). Recordo, em jeito de nota, que a introdução da cadeira de Sociologia nos planos de estudos dos cursos de Engenharia na Faculdade de Ciências e no IST datava de 1955, quando Leite Pinto (fundador da Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica) ocupou a pasta de Ministro da Educação Nacional.
No contexto da reforma educativa, os jovens oficiais das Forças Armadas adquiriram uma compreensão e uma leitura reflexiva da realidade, quando em 1961 foram destacados para a Guerra Colonial. E então ocorreu toda uma dialéctica e questionamento do sentido daquela guerra; sangrenta e inútil. Neste campo de acção, importa realçar a importância dos militares milicianos, alguns com uma cultura política assaz e esclarecida, que durante a comissão expedicionária de dois anos na guerra colonial, contribuíram para ampliar o entendimento e as contradições no terreno, através das vivências partilhadas com militares de carreira. No caso dos oficiais do quadro permanente (capitães), as comissões expedicionária de dois anos repetiam-se duas, três ou mesmo quatro vezes.
A realidade da guerra desmentia a propaganda oficial da ditadura, e ainda mais quando essa guerra, que se supunha durar quatro ou cinco anos se prolongou por treze anos, opondo os movimentos de libertação africanos ao domínio colonial português. Foram treze anos de uma “Guerra Inútil” (como todas o são), que provocou mais de 10.000 mortes e 30.000 feridos graves nos militares portugueses, mais de 6.000 mortos e 12.200 feridos graves na população civil de origem europeia, mais de 29.000 mortos e 9.450 feridos africanos: guerrilheiros e população civil local e desconhecemos o número de estropiados. A guerra também foi uma das causas da forte vaga migratória que conduziu mais de um milhão de portugueses a abandonar o país; emigrantes e desertores que procuraram uma réstia de Esperança na Europa civilizada.
O mal estar entre militares mais politizados e o marasmo de soluções politicas e sociais levou os “capitães” (jovens que mais sofriam na guerra, no teatro de operações) a começarem a organizar-se e a contestar o governo. Isto começou uns quatro anos antes com pequenos núcleos de conspiradores.
Pessoalmente sempre fiz parte desses conspiradores chegando a manifestações por escrito em 1973(Congressos da Oposição Democrática de Aveiro em Abril) e sendo co-autor de abaixo assinados também esse ano e que foram o pontapé de partida para a libertação em Abril de 1974.
Se não me engano, você participou das primeiras reuniões clandestinas de capitães em Bissau, em 1973, junto com Otelo Saraiva de Carvalho, como foram esses primeiros passos do Movimento das Forças Armadas e você acha que Otelo foi realmente o principal estrategista da revolução?
A minha participação já vinha de anos anteriores. Fui por isso “enviado”, pelas chefias descontentes comigo, para a Guiné-Bissau onde me juntei e fortaleci o núcleo de capitães já pré-revoltados, tais como Otelo, Salgueiro Maia e Matos Gomes e mais cinquenta. Em quatro reuniões de Agosto de 1973 iniciámos ali o Movimento de Capitães que se alargou para Portugal, Angola e Moçambique. Como sabemos os militares renovam-se de dois em dois anos na guerra e Otelo Saraiva de Carvalho e Salgueiro Maia (e outros) regressaram a Lisboa em Setembro ou foram regressando depois. Vieram fortalecer os núcleos de conspiradores no continente.
O mais importante e difícil foi ter-se conseguido a unidade e o alargamento de núcleos de conspiração. Esse esforço levou capitães da Armada e da Força Aérea a juntar-se também à revolta. Houve peripécias e tudo correu bem. Sim Otelo teve um papel importante (responsabilizou-se pelo comando operacional de um plano elaborado por um grupo de militares) porque estrategas fomos bastantes alguns de nós. Na Guiné fizemos golpe igual e estaríamos como plano B no caso de haver insucesso em Portugal.
O dia 25 é lembrado pela população, e há muitos que reivicam o seu legado, mas pouco se fala sobre outro dia 25, o de novembro de 1975, que levou ao fim do Processo Revolucionário em Curso (PREC), qual foi a sua posição naquele momento, e como se desenrolou esta crise que, para muitos, foi o início do fim da revolução?
Pouco se fala do 25 de Novembro? Depende. Acho que se fala de mais… mentindo. Mas o importante seria que sobre ele se falasse a verdade e não a história fabricada pelos contrarrevolucionários e ou assustados com Abril. No meu último livro descrevo a verdade citando o depoimento do General Franco Charais (hoje falecido). Vossa Excelência nunca foi ignorante, e até fomos amigos na cultura e nas artes. Por isso, faço questão de relembrar a sua interpretação correcta sobre o 25 de Novembro, inscrita na página 153 do seu livro «História Viva. 25 de Abril Golpe Militar ou Revolução?» (2013): “Evidentemente que, para mim, o 25 de Novembro não foi uma tentativa de golpe de Estado da esquerda revolucionária e/ou do PCP, mas uma simples rebelião de paraquedistas abandonados pelas suas chefias”. No dia 25 de Novembro, eu MDC estive nos estúdios da RTP do Lumiar na qualidade de segundo-comandante da EPAM, e apenas permiti que uma comissão de paraquedistas esclarecesse publicamente as causas da sua rebelião, como V. Ex.ª bem referiu, apelando à serenidade e não à “revolução popular armada”; calúnia transformada em delito, de que fui injustamente acusado pelos meus pares. ( Página 142 do meu livro “Crónicas de um Insubmisso”. Editado em 2024).
Álvaro Cunhal e Vasco Gonçalves concordaram em designar Mário Soares como o principal responsável pela preparação e desenvolvimento da contra-revolução portuguesa, em cumplicidade com o embaixador americano, Frank Carlucci. Concorda com eles aos principais culpados pelo fim do sonho revolucionário de Abril?
Todo o chamado “Verão Quente” de 1975 foi incendiado com uma acentuada dissidência entre os que queriam reformas profundas no sistema e os que se contentavam com uma leve brisa de mudança. Uns entendiam que as organizações de base populares, em são convívio com os partidos e uma disciplina militar consentida, poderiam ser os pilares da arquitectura de um novo sistema político-social, enquanto outros se satisfaziam com os modelos tradicionais de uma Europa mais rica e preparada. Paralelamente aos avanços revolucionários, dos governos do general Vasco Gonçalves, caminhavam, a diferentes velocidades, os militares “ditos moderados” e as forças políticas mais conservadoras (provocadores, extrema-direita, saudosistas, etc.) e as de centro-esquerda ou mesmo esquerdistas (onde cabiam diversas tendências com graus de consciencialização política díspares).
A partir do momento em que se permitiu que a direita e os saudosistas do passado cavalgassem a seu belo prazer [com apoio directo e/ou indirecto dos militares “ditos moderados” (onde já cabe tudo)] iniciou-se uma espécie de “cruzada” com 0 propagandear de um iminente golpe de esquerda (a criação de uma “Comuna de Lisboa”, etc. etc.!!!) … Tal ideia parece não ter sentido hoje, mas teve! E serviu de fundamento e justificação para a preparação do golpe contrário (contra-revolucionário) com completo apoio do embaixador dos EUA, Frank Carlucci desde que chegou a Lisboa no principio de 1975.
Podem chamar-lhe um “golpe de defesa” para rechaçar o outro. Podem chamar-lhe o que quiserem, pois podem, mas a verdade é que tudo se preparou. Basta ler o livro A Resistência. O Verão Quente de 1975 (1976), do comandante José Gomes Mota, que nos dá conta de todos os pormenores. E, anos mais tarde, Melo Antunes, Jaime Neves, Ramalho Eanes, e mais recentemente Vasco Lourenço e Sousa e Castro, não se coibiram de narrar os pormenores. Mas também o livro do Prof. Avelãs Nunes “O Novembro que Abril não Merecia”, editado em 2022, muito nos esclarece após uma longa e cuidada investigação.
Mas forças progressistas não desistiram, nem desistem, e têm lutado com todas as forças e meios disponíveis apesar da insistência com que o sistema capitalista selvagem e predador, com suas manhas e artimanhas, tenta liquidar a nossa Liberdade, matar o nosso 25 de Abril. Que temos de defender e reconquistar todos os dias!
No 50º aniversário da revolução dos cravos, a terceira força política no parlamento português é a formação de extrema-direita, o Chega, que tem 50 deputados, enquanto a CDU, coligação onde está o PCP, só tem 5 assentos, em neste cenário político que permanece a herança da revolução, e que esperança permanece o seu legado?
O aparecimento e subida súbita da extrema direita. Tenho afirmado há anos.
Para mim o responsável é o sistema desumano, do capitalismo internacional, que se instalou no globo, descurando a felicidade humana e jogando com ela apenas por interesse material e lucro. A demagogia e o populismo manipulam os mais desfavorecidos e descontentes.
Saber mais e melhor é preciso para distinguir oportunismos assaz perigosos…
O sistema liberal actual e a deficiente actuação dos governos eleitos que se preocupam mais em manter-se no poder do que com os interesses das gentes são bênção para a ignorância de certas populações invadidas pelo populismo.
Portugal, como membro da NATO, está agora, de alguma forma, envolvido na guerra na Ucrânia, e já há alguns líderes europeus que pedem para dar um passo mais longe, e até enviar tropas para travar o avanço russo. Pensa que o cenário é que 50 anos depois da revolução, os militares portugueses entrem no conflito para defender os interesses dos EUA?
A NATO. É de facto um braço armado americano.
Os portugueses com as suas dificuldades e, sendo uma grande maioria muito inculta politicamente, vão para onde os mandam com falsas promessas como o fizeram fustigados para a Guerra Colonial defender interesses alheios. Lamento.
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